quarta-feira, 7 de novembro de 2012

CORPO EM EVIDENCIA: O DESEJO EUROPEU DE DOMESTICAR O CORPO DO ÍNDIO



PALAVRAS CHAVE: CORPO, CONTROLE, CIVILIZAÇÃO,

OBJETIVOS:
Apresentar as intencionalidades do europeu em colonizar o Brasil;

 Discutir a relação que o europeu tinha com o seu corpo;

 Analisar o discurso europeu em relação ao corpo do índio.


5 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA


O descobrimento das terras americanas ocasionou certo tumulto na Europa, sobretudo em virtude do modo de vida dos seus habitantes que de longe se diferenciavam do conceito de civilidade que se instalava na Europa, conceito esse que servia para controlar os corpos e uni-los em torno de um bem comum a fim de monitorar suas intimidades e integra-los num sistema onde seus hábitos, costumes e sua vida íntima eram relacionados ao corpo, segundo Jacques Revel (1991, p.169):


 [...] Com efeito, o século XVI é o de um intenso esforço de codificação e controle dos comportamentos. Submete-os às normas da civilidade, isto é, às exigências do comércio social. Existe uma linguagem dos corpos, sim, porém destina-se aos outros, que devem poder captá-la. [...]


Em virtude desse pensamento, fez-se necessário na América Portuguesa uma colonização que atendesse ao mercantilismo, que estava em alta na época das grandes navegações e em como os habitantes das novas terras seriam inclusos a esse sistema “civilizatório” tendo em vista que os mesmo deveriam ter seus corpos domesticados para atender a demanda exigida pelo sistema. A influência do pensamento renascentista do embate entre o bem e o mal que marcou o período na Europa colocando em voga tensões como o inferno e o paraíso, pensamento laico e religioso e assim por diante, também teve continuidade na colônia brasílica.
No Brasil esse embate se fez presente quando analisamos as intencionalidades dos portugueses, segundo Laura de Mello e Souza (1993, p.22):


Tensão entre o racional e o maravilhoso, entre o pensamento laico e o religioso, entre o poder de Deus e do Diabo, embate, enfim, entre o bem e o mal marcaram desta forma concepções diversas acerca do novo mundo. Para os primeiros colonizadores e catequistas da América, que viveram numa época em que contendas religiosas dilaceravam a Europa, o recurso a tal embate não era simples retórica, mas índice de mentalidade onde o plano religioso ocupava lugar de destaque, mostrando-se presente nos mais diversos setores da vida cotidiana.


Ao mesmo tempo em que os portugueses procuravam novos mercados para comercializar existia a preocupação de trazer novas almas ao rebanho da Santa Madre Igreja, os catequistas tiveram um papel muito importante na colonização, uma vez que a evangelização servia tanto para trazer a alma do nativo a Deus como também servia para domesticá-lo e inclui-lo no sistema colonizador, com o objetivo de transformar a colônia numa verdadeira réplica de Portugal, sendo necessário para isso a demonização da imagem do nativo. O português se via então com a carga de ser o enviado de Deus para evangelizar os gentis, segundo Laura de Mello e Souza (2009, p.49): “Os portugueses se imbuíram sinceramente de seu papel missionário. Os outros homens, por instituição divina, tem só a obrigação de ser católico: o português tem obrigação de ser católico e de ser apostólico (...)”. Era um pensamento constante que circulava em Portugal, principalmente no meio dos eclesiásticos que em meio a tantos outros povos, Deus tinha escolhido Portugal para a missão de colonizar e fazer as terras recém-descobertas produzir riquezas e também resgatar as almas dos seus habitantes para Deus. Vemos então que a expansão da fé e a colonização caminharam juntas, então, nada mais simples do que justificar a dominação dos nativos brasileiros a partir do pressuposto de que eles não tinham nem leis nem religião, portanto possuíam um nível civilizatório inferior aos do europeu.
Então em nome de Deus, os portugueses agiram e tentaram a todo custo moldar os costumes, práticas... Enfim a cultura do índio para torná-lo um ser dócil capaz de realizar diversos trabalhos como o da exploração do Pau Brasil e também a agricultura. O ameríndio possuía seu próprio sistema de agricultura, mas era um sistema que visava apenas o necessário para se manter, não era o objetivado pelo português, que usando desses argumentos para a dominação do índio, chegou a compara-los com os negros que eram escravizados, estes estavam habituados a manter essas relações de trabalho, portanto eram considerados mais “civilizados” que os índios, segundo Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio (2001, p.24):


[...] Os portugueses ignoravam a identidade dos povos indígenas, acusando-os de não ter religião ou de desconhecer a agricultura. Consideravam que seu nível civilizatório era inferior ao dos nativos africanos; parecer que muito breve iria justificar a exploração e a catequese obrigatória de tribos inteiras [...]

Fica claro que os portugueses se preocuparam em fazer as terras brasileiras gerarem as riquezas que aqui não encontraram, e que uma das suas principais intenções seria moldar um corpo que estava habituado a um modo de vida totalmente diferente do seu, o do índio, para um corpo com características muito mais próximas das suas, em que qualquer sinal diferente seria motivo para banimento ou escravidão forçada dos mesmos.
A normalização e o combate às práticas culturais dos indígenas por parte dos portugueses é uma continuidade das práticas que estavam ocorrendo na Europa. Com o Renascimento, os humanistas entraram em evidência e os padrões mudaram lentamente, o corpo ganhou destaque e as regras para controlá-lo iam sendo normatizadas, Segundo Mary Del Priore (2011, p.13):


[...] A vida quotidiana naquela época era regulada por leis imperativas. Fazer sexo, andar nu ou ter reações eróticas eram práticas que correspondiam a ritos estabelecidos pelo grupo no qual se estava inserido[...]


Na Europa o corpo era, portanto, regulada a partir do grupo social em que o indivíduo estava inserido, sendo codificados todos os movimentos corporais do mesmo, desde sua postura até seu modo de falar. As regras começaram a ser divulgadas, e o comportamento passou a ser definido como regra geral para identificar o grupo social ao qual o indivíduo pertencia, regras que iam desde o modo de se comportar das crianças, até os mais velhos. O corpo passa a ser visto como principal meio civilizador, e nele é que essa ideia ia ser aplicada, segundo Jacques Revel (1991, p.174):


[...] Assim são proscritos num mesmo plano os gestos e atitudes que poderiam arrancar a humanidade de si mesma e arrastá-la para a animalidade, por exemplo, (o riso equino, a voz nasal que lembra o elefante, a postura curvada como a das aves pernaltas); os que perturbam a harmonia, confundindo os gêneros (e tudo o que se refere em particular à indistinção sexual), mas também expressando paixões individuais com demasiada indiscrição [...]


Dessa forma, todo e qualquer comportamento que estivesse fora dos padrões estabelecidos era tido como anormal e era imediatamente corrigido. O objetivo era eliminar todo e qualquer indício que mostrasse alguma animalidade, a naturalidade do corpo era cada vez mais reprimida, e quanto mais ele se afastasse de sua naturalidade, mais civilizado ele seria. As regras se distanciavam e o “pudor” tinha significados e variações diferentes quando relacionado a práticas de homens ou de mulheres, ou de diferentes grupos sociais, segundo Mary Del Priore (2011, p.19): “(...) Mesmo na Europa, pudor de sentimento & pudor corporal tinham significados diferentes entre os diferentes grupos: ricos ou pobres, homens ou mulheres”. Portanto, prática que poderiam ser concebidas aos homens na maior naturalidade, para as mulheres já não era permitida por questões de pudor, da mesma maneira com as classes sociais, a nobreza gozava de muitas regalias a práticas que se cometidas por classes como a burguesia, seria motivo de vergonha e consequências por parte das autoridades superiores.
No Brasil o discurso europeu buscou legitimar o seu domínio sobre os índios, várias tentativas para moldá-lo e tentar inseri-lo no sistema de colonização português foram utilizadas, buscando assim uma representação mais próxima possível do modelo de cristandade vivido na Europa. O corpo do nativo foi o principal alvo dessa ideologia cristianizadora. O primeiro contato que os portugueses tiveram com os índios não causou muito espanto, pois a nudez do índio foi associada a sua pobreza e inocência, mais a medida que o contato entre eles foi se intensificando os costumes e prática dos índios causou certos desconfortos nos portugueses, que se utilizaram dos mesmo para justificar a colonização das terras e a catequização dos índios, a primeira preocupação foi com a nudez, segundo Mary Del Priore (2011, p.17):


[...] Vesti-lo era afastá-lo do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas duramente combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, além de andar peladas, as indígenas não se negavam a ninguém.


A nudez, foco de situações constrangedoras e aflitivas para o europeu passou a ser combatida com o pretexto de assim se combater os pecados nefandos da carne, principal foco disciplinar da Igreja. A medida que a colonização ia avançando, a igreja percebeu que o perigo maior residia no uso que o nativo fazia do seu corpo, e qualquer característica diferente encontrada num grupo, ou numa tribo era motivo de catequização forçada, afim de se banir por completo esses costumes, segundo Márcia Amantino (2011, p.18):


Com exceção da presença ameaçadora do pajé, todos os demais problemas identificados como perturbadores da boa conduta eram decorrentes, direta ou indiretamente, dos usos que os indígenas faziam de seus corpos e dos alheios. O corpo indígena, nu e praticante de atos considerados pelos religiosos como ofensivos a Deus, precisava ser domado.


A preocupação agora residia no uso que o índio fazia do seu corpo e do corpo do próximo, práticas como a antropofagia, homossexualidade e a poligamia passaram a ocupar o topo da lista das atividades a serem duramente combatidas pelos catequizadores. A medida que a evangelização ia avançando os religiosos  percebiam o quão difícil estava sendo a aculturação desses povos, que insistiam em continuar com suas práticas, mesmo se transformando exteriormente, no seu interior continuavam com o mesmo pensamento e conservando sua cultura, a imagem do bem e do mal ressurgia nesse contexto, segundo Laura de Mello e Souza (2009, p.95): “(...) Conforme se iniciou a ação dos soldados de Cristo, passaram a existir “índios índios” e “índios conversos”, sujeitando-se estes a Deus e aqueles ao diabo (...)”.
As fugas se intensificavam e os que fugiam eram estereotipados como “não civilizados”, e o interior da colônia, o sertão, era visto como “lugar infernal” por esconder a maior parte dos Tapuias(índios maus e não civilizados), e a parte litorânea era habitada pelos Tupis (bons e civilizados) esses passaram por transformações corporais, fruto de sua colonização e catequização. Os índios “não civilizados” passaram a ser caracterizados a partir de seus corpos, quanto mais bizarros mais selvagens seriam, os artefatos usados, suas vestimentas, e o uso que faziam de seu corpo e do próximo passaram a identificar o nível de civilidade que cada tribo possuía, fato que justificou as guerras e a dizimação de tribos inteiras. Segundo Márcia Amantino (2011, p.41):

Mesmo autores que não faziam claramente tal distinção entre os grupos e defendiam os índios da escravidão, da exploração e do confisco de suas terras identificavam-nos como seres exóticos, primitivos, destituídos de praticamente todas as benesses da civilização. Seus corpos eram os cenários em que essas características ficavam claramente definidas.


Quanto mais estranho e bizarro ao olhar europeu fosse às características de um grupo de índios, mais longe da civilização eles estavam, e precisavam ser catequizados e domesticados, mesmo com uso da violência, pois de nada serviam para a colônia, pelo fato de não servirem para o trabalho, restando apenas suas almas para Deus.

Walmar Machado ,
Licenciado nas Faculdades Integradas de Patos.




REFERÊNCIAS

AMANTINO, Marcia. E eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. In: AMANTINO, Marcia; PRIORE, Mary Del (orgs.). História do corpo no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2011. Cap. 1. p. 15 – 43.

PRIORE, Mary Del. Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.

________; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da história do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

REVEL, Jacques. Os usos da civilidade. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (orgs.). História da vida privada 3: da renascença ao século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. Cap. 2. p. 169 – 210.

SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização séculos XVI – XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

_________. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiçaria religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Um comentário: