quarta-feira, 3 de julho de 2013

O DISCURSO EUROPEU EM RELAÇÃO AO CORPO NA COLÔNIA




 

Neste capítulo analisaremos como o olhar português percebeu o cotidiano da América portuguesa. Esse olhar civilizatório adentrou a colônia e marcou a vida dos habitantes, tanto dos nativos como também dos europeus que aqui fizeram morada. A colônia, a partir do olhar europeu, lusitano, era um território que divulgava indecências e imoralidades. Combater esses desregramentos era importante para o empreendimento da colonização tanto nas mentalidades dos colonos como nos seus corpos. Quando Caminha escreve na sua carta relatando aos seus superiores às características das novas terras, a preocupação principal era a descrição das terras, vegetação e também da gente encontrada aqui. Os relatos em relação ao corpo dos nativos também tiveram ênfases, e suas características também foram descritas. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 16):


O relato também fazia referência a outros aspectos culturais ligados aos corpos indígenas, entre os quais os cabelos, descritos como corredios, cortados e enfeitiçados, a pintura e o uso de objetos identificados como adornos. Com relação à pintura corporal, informava que eles usavam preto e vermelho nos troncos e nas pernas e que variava de pessoa para pessoa ou conforme o gênero. Já sobre o uso de adornos, o cronista descreveu que enfeitavam os lábios inferiores dos índios, o que não impedia de comer, beber ou falar.


Esse olhar do português para a colônia é marcado por uma gama de estereótipos que consequentemente deram características ao processo colonial. A escrita de Caminha legitima, inicialmente, a partir do seu olhar, a descoberta de um paraíso terrestre, e a sua gente se confunde, em um momento inicial, com a bondade do criador que fez tamanha e deslumbrante obra, e esse paraíso estava carente da gerência e dos cuidados que somente a civilidade poderia garantir.
As terras brasílicas eram assim descritas, como os olhos viam e como o pensamento inspirava, mas, sobretudo percebem-se articulações nas palavras do navegante português, os objetivos moralizantes e civilizatórios que deveriam, posteriormente, serem usados no paraíso recém-encontrado. Não chegava o português, as tão desejadas Índias, importante centro comercial da época, mas encontrava-se a possibilidade de legitimar na vastidão do território encontrado uma parte do mundo, da moral e da fé portuguesa. O Novo Mundo para o colonizador português era um paraíso pronto para ser utilizado como fonte geradora de riqueza, para isso seria necessário um mecanismo que atendesse as aspirações portuguesas da época. A partir de então podemos notar que houve uma transformação intencional que foi gerada pelo imaginário do colonizador, ao converter o paraíso inicial e um inferno. Mesmo que façamos uma leitura baseada por certa ingenuidade do europeu, vamos perceber desde o começo as intencionalidades dos colonos sendo efetivadas no dia-a-dia da colônia.
No Brasil o discurso europeu buscou legitimar o seu domínio sobre os índios, várias tentativas para moldá-lo e tentar inseri-lo no sistema de colonização português foram utilizadas, buscando uma representação mais próxima possível do modelo vivido na Europa, e o corpo foi o principal alvo dessa ideologia, combatendo os desregramentos e o que não era decente para um mundo “civilizado”.
O primeiro contato que os portugueses tiveram com os habitantes das novas terras não causou muito espanto, pois sua nudez foi associada a uma espécie de pobreza e inocência, mais a partir do contato rotineiro entre colonos e os nativos, os desconfortos logos surgiram da parte do português, que começava a ver no outro práticas que precisavam ser combatidas, para o bom andamento da colonização e manutenção da fé cristã. Quando Caminha escreve em sua carta descrevendo os habitantes das terras, “eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas...” num primeiro momento não foi visto uma ameaça real quanto ao corpo do índio, mas a partir do momento que a colonização é empreendida, essa situação se tornou foco de constrangimentos e desconforto, sendo necessário ao português usar desse tema para uma justificação plausível no controle das terras e domação do nativo, sendo a primeira preocupação justamente a nudez, segundo Mary Del Priore (2011, p. 17):


Vesti-lo era afastá-lo do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas duramente combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, além de andar peladas, as indígenas não se negavam a ninguém.

A nudez do nativo passou a ser o foco de combate, sob o pretexto de assim se evitar os pecados nefandos da carne, um dos principais focos da cristandade. A medida que a colonização ia se estendendo, a Igreja percebeu que o perigo maior residia no uso que o nativo fazia do seu corpo, e qualquer característica que fosse contra essa regra era desculpa para uma catequização muitas vezes forçadas. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 16):


Para eles, como não era importante cobrir seus rostos, não fazia a menor diferença tampar ou não seus corpos, situação constrangedora e aflitiva para os europeus, os quais, assim, trataram logo de entregar aos índios algumas peças de vestuário.


As medidas iniciais citadas por Amantino foram a de cobrir os corpos dos índios, que a priori foi resolvido, para assim ficarem mais apresentáveis ao público português, essa medida foi emergencial, até que os perigos realmente claros apareceriam com a convivência que se promoveria com a colonização. Por isso foi que o português “vestiu o índio”, ou seja, lhe impôs sua cultura e seus valores. A ‘europeização’ começava então no contato incial entre os dois povos, se destacando principalmente nos novos moldes que deveriam ser dados aqueles corpos.
As questões acerca do corpo sempre foram palco para discursões no cristianismo, as variáveis a cerca desse assunto foram percebidas e são facilmente encontradas em terras brasílicas. Segundo Oliveira (2011, p. 45):


Na história do cristianismo, as referências ao corpo aparecem como uma variável constante. Todavia, elas não assumem um caráter uniforme, pois ora o corpo é elemento de salvação – o de Cristo -, ora pode levar a danação, se sobre ele não se estabelecesse uma constante vigilância e por vezes, um menosprezo e um desapego.


Partindo desse pressuposto, como adestrar a vida da colônia brasílica no modelo do corpo sem manchas do Cristo? A multiplicidade de práticas e costumes encontrados aqui na colônia assustou e permeou o pensamento cristão do colonizador. Práticas como sodomia (homossexualidade), incesto, antropofagismo, são elementos comuns, dentre outros, facilmente encontrados no cotidiano da gente que aqui vivia, sendo consideradas práticas demoníacas, de gentes bárbaras, totalmente irracionais que agora viviam no mundo civilizado, dos agentes da colonização. Esse cotidiano da colônia passa agora a ser permeado por todas essas mazelas condenadas pelos colonizadores. Aniquilar todas essas imagens perigosas só poderia ser possível se o foco condutor fosse o de aproximar o mais rápido possível esses habitantes ao modelo do corpo exemplar do filho de Deus. Disciplinar os corpos e o próprio cotidiano em que eles estavam inseridos era exorcizar o demônio que parecia habitar e possuir inúmeros adeptos na América. O corpo passa a ser o elemento pelo qual se iria alcançar a santidade desejada, santidade essa que representava a ordem social que o colonizador estava inserido. Essa santidade gerava uma disciplinarização das sensibilidades por meio da aceitação de todas as regras impostas pela Igreja Católica. Essa harmonia social advinda da santificação era segundo Oliveira (2011, p. 67-68):


Corpo e santidade foram importantes no estabelecimento de uma religiosidade particular na América portuguesa. Elemento de uma crença tradicional na cristandade ocidental, o culto aos santos ajudou a reforçar diversos aspectos do catolicismo, ao longo do período colonial. Além da questão simbólica, expressou dimensões do projeto de conversão desenvolvido pela Igreja com o concurso de Estado português e igualmente serviu como reforço das hierarquias sociais. Nesse sentido, a corporificação da santidade foi expressão de diversas apropriações do sagrado e um elemento a reforçar a ordem social vigente, que procurou aproximar os fieis de um cristo mais concreto e, com isso, coloca-los diante da orientação e da submissão à Igreja. Tal se constituiu em uma instituição fundamental da formulação e veiculação de valores socioculturais e políticos conformadores de uma sociedade escravista e excludente. Ou seja, corpo santo, sociedade santificada, defesa da ordem, respeito à Igreja.


Desde as primeiras horas da presença portuguesa em solo americano, podemos perceber como já foi citado anteriormente, todas as predisposições que o colonizador possuía, dando ênfase a religiosa. Vimos na citação de Oliveira que a ajuda celeste foi solicitada constantemente pela gente lusitana. Por onde passavam, ao longo da expansão colonial, os santos eram invocados, buscando sua intercessão, nomeando lugares, rios em homenagem a esses servos de Deus que souberam nessa vida desejar o céu. Essa onipresença dos santos foi um dos elementos mais característicos da expansão da cristandade no ocidente e marcou o processo de colonização na América Portuguesa. Para a efetivação da colonização ser, digamos assim, um verdadeiro sucesso, os santos católicos tiveram função importantíssima nesse contexto, dando ao europeu a proteção que eles precisariam para a empreitada que estava por vir.
Ao lado do Estado europeu, a Igreja Católica ocupou uma posição de destaque na colonização americana. O espírito cruzadista, típico do período medieval, que esteve presente nos grandes empreendimentos marítimos, reapareceu na Época Moderna, confundindo-se com a própria missão colonizadora, razão pela qual a conquista da América está sempre relacionada, desde o seu início, a dois signos da civilização cristã europeia: a cruz e a espada.
A Igreja, representada pelas várias ordens religiosas - jesuíta, carmelita, dominicana e beneditina, entre outras - esteve presente no Brasil especialmente com a ação da Companhia de Jesus, participante de nossa história desde o momento em que Portugal assumiu diretamente a empresa colonizadora.
No século XVI, a “unidade” cristã europeia foi quebrada com o movimento da Reforma Protestante. Com a rápida expansão das doutrinas protestantes pregadas pelos seus líderes, ganhando maior destaque as figuras de Lutero e Calvino, a Igreja Católica reagiu com o Concílio de Trento, que, além da reforma interna, procurou criar instrumentos de combate ao protestantismo. Nessa medida, foi instituída a Congregação do Índice, proibindo a publicação de obras contrárias à doutrina católica, e restabelecido o Tribunal da Inquisição, destinado a perseguir e condenar os inimigos da fé católica. Diante deste quadro, o espanhol Inácio de Loyola criou, em 1534, a Companhia de Jesus, uma nova ordem religiosa com o objetivo de servir e de lutar pela Igreja Católica Apostólica Romana. Portanto, os jesuítas - soldados de Cristo - através da catequese e da educação, serviriam à ação da Contra Reforma, compensando as perdas do catolicismo na Europa com a conversão das populações nativas do Novo Mundo. Assim reconhece Del Priore que (2001, p. 16):


A colonização das almas indígenas não se deu apenas, porque o nativo era potencial força de trabalho a ser explorada, mas, também, porque os índios não tinham “conhecimento algum do seu Criador, nem de cousa do Céu”. Isso foi fundamental para dar uma característica de missão à presença de homens da Igreja na América portuguesa.


A divulgação da doutrina cristã foi, na colonização, uma prática com dupla função. Ao mesmo tempo em que a fé era imposta ela servia de mecanismo para civilizar os indígenas, ela serviu para não se perder as muitas almas que estavam sem proteção, e sem ela esses homens não chegariam nunca a civilização. Testemunhar e comungar a fé católica e estar sob as leis da monarquia, reconhecendo a soberania do rei, significava a inserção no mundo civilizado. Monarquia e Igreja trabalharam juntas a fim de obterem os resultados mediante a colonização das terras, a Igreja mediante a salvação das almas, com a disciplinarização dos corpos, e posteriormente o estado também colheriam os frutos dessa ação da Igreja. A missão dos jesuítas foi de fundamental importância para esse processo, eles tinham a função de defender e propagar a fé, fazendo assim o projeto de colonização fluir e ser satisfatório tanto para os religiosos, quanto para os homens do rei.
A problemática surgia justamente quanto ao método de melhor aplicação da catequese, já que se tratava de uma gente totalmente desconhecida, de língua desconhecida, com hábitos e costumes totalmente diferentes dos europeus. A imposição parecia a melhor forma de propagação, percebemos que a propagação da fé católica aqui na América como uma imposição, uma inserção dos habitantes no ideal e nas perspectivas do colonizador. A ideologia europeia se estabelecia de forma decisiva quando ela, não deixava o colonizador perceber, que aqui se travava de um mundo totalmente diferente do seu, merecendo, portanto, uma visão diferenciada, um meio diferente de propagar sua fé, uma realidade nova. As referências cristãs do europeu estavam totalmente impregnadas com o período de reformas religiosas que a Europa estava passando no século XVI, na qual a fé era imposta a força, e toda prática contrária combatida de forma violenta e radical, levando o colonizador a ver a gente indígena e entende-la como fora de suas expectativas. Então, impondo suas ideias, sua moral, sua crença o colonizador vai cada vez mais perceber o que ele concluiu logo que chegaram as terras tupiniquins: que a colonização chegou no momento certo, e principalmente, era missão dela ser a intervenção divina nessa realidade impensada, levando em conta o pressuposto de uma moral europeia, cristã-católica, e monárquica.
Diante desse cenário, os índios e suas práticas eram, a partir do pensamento europeu, algo ameaçador e que precisaria ser combatido. As suas práticas e costumes iam sendo combatidos mediante a colonização avançava. Primeiramente vale destacar o modo de como os grupos indígenas vivia. Para o europeu, não era concebido como normal o sistema tribal e as formas que ele se efetivava. Assim destaca Souza (2009, p. 92): 


A excessiva crueldade do indígena repugna à condição humana, dizia Gandavo na História da província de Santa Cruz: não apenas matam todos aqueles que não são do seu rebanho como também os comem, “usando nesta parte de cruezas tão diabólicas, que ainda nelas excedem aos brutos animais que não tem uso da razão”.


Aqui está descrita a figura do indígena como sendo um anti-humano, um homem animal, é essa a visão do europeu em relação ao indígena. A única solução, ou podemos dizer melhor, o único remédio para reverter toda essa situação era a imposição da fé, que precisava ser usada com urgência. A fé vestiria muitos corpos que se encontravam nus, carentes de uma moral racional que justificasse sua existência, essas almas estavam todas sedentas por salvação. Diante desse aspecto, a presença das instituições portuguesas na colônia, poderia ser comparada a soldados de Cristo que traziam o socorro, tanto de uma perspectiva civilizatória como espiritual. Essas instituições legitimavam o ideal colonizador do português, afetando decisivamente todo o cotidiano da colônia. À medida que os religiosos adentravam o Brasil, a civilidade e a espiritualidade do português se efetivavam no Novo Mundo, como também aumentava o número de católicos vindos da Europa para a colônia. Portanto, civilizava-se e cristianizava-se, Igreja Católica e a metrópole trabalhavam juntas, unidos religião e poder, desempenhando papel importante na imposição de suas ideias dominadoras.
Esse desejo de dá forma a um povo totalmente uniforme, nos faz compreender a importância da Companhia de Jesus na colonização, como citado anteriormente, criada para compensar as perdas da Igreja Católica no Velho Mundo, homens preparados tanto no campo espiritual, dos estudos bíblicos como também psicologicamente, para viajarem a lugares distantes no intuito de arrebanhar mais almas para a Igreja. Assim agiram os jesuítas, tentaram moldar os indígenas, suas práticas e modo de viver. O resultado previsto pelos colonizadores era o de total passividade por parte dos ameríndios, que eles seriam adestrados e moldados segundo a concepção de vida europeia, já que os primeiros relatos deixavam transparecer a crença de que seria fácil acabar com os “maus costumes” indígenas. Essa tentativa de modelar todo o comportamento e cotidiano do nativo contribuiu para o surgimento de um mal estra entre os jesuítas e os indígenas. Os índios, ao contrário do que se pensavam, também apresentaram resistência e negação à imposição do processo de colonização. Em inúmeros momentos isso se concretiza nos contatos entre os religiosos e as tribos, gerando verdadeiros embates no funcionamento da Companhia de Jesus. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 20):


Inicialmente os jesuítas acreditaram que bastaria um trabalho eficiente de catequese e ensinamento da palavra de Deus e os indígenas abandonariam suas práticas bárbaras e encontrariam o caminho da salvação, pois eram seres bons por natureza. Todavia, as coisas não se passaram dessa forma. Depois de muitos problemas, os religiosos perceberam que os índios não eram capazes de abrir mão de sua cultura de maneira tão fácil.


O caminho da cristianização da colônia não seria percorrido sem serem travadas verdadeiras batalhas em nome da fé. De um lado estavam os agentes da Igreja, e do outros os muitos gentios, que por muitas vezes se negavam a aceitar essas mudanças tão drásticas. A resistência apresentada pelo nativo era uma forma de mostrar sua aversão ao desejo de vida proposto pelo homem branco, e acima de tudo uma maneira de se manterem vivos e unidos, frente a tantas realidades de morte e dizimação. Aos olhos do europeu, era fácil abrir mão de um cotidiano que era considerado por eles um ambiente demoníaco e selvagem. Mas, na prática a realidade era completamente diferente, os jesuítas experimentaram a dura realidade por não aceitarem um mundo diferente do seu.
A colonização baseou-se, então, na radicalização do pensamento português, usando uma fé que precisou ser imposta, garantindo o sucesso de uns frente a completa destruição de outros, e a Igreja ia cumprindo seu papel, auxiliando a monarquia, fazendo dos muitos santos, aliados fieis na construção de um território legitimamente civilizado controlados pela Igreja e pelo Estado Português. Com o avançar da colonização, muitos índios perderam sua identidade cultural, devido o contato com o português, outros apesar de mudarem seu estereótipo, continuavam resguardando traços culturais próprios, insistindo em continuar com suas práticas, segundo Laura de Mello e Souza (2009, p. 95): “[...] Conforme se iniciou a ação dos soldados de Cristo, passaram a existir “índios índios” e “índios conversos”, sujeitando-se estes a Deus e aqueles ao diabo [...]”.
Existiam agora na colônia, denominações que especificavam o grupo do qual suas práticas definiam o seu caráter civilizatório e quanto mais um grupo resistisse a catequização, mais seu grau de selvageria era elevado. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 22):


O primeiro seria dos mansos, pacíficos e que aceitaram a catequese e o posterior aldeamento. Viviam no litoral, perto dos aglomerados coloniais. Exerciam atividades ligadas ao trabalho e prestavam serviços à sociedade. Geralmente eram identificados como Tupis. Também havia aqueles que viviam no interior, longe do litoral, nos chamados sertões. Eram os tapuias, identificados como grupos hostis, que não aceitaram aproximações com os colonos, a catequese, o aldeamento e muito menos o trabalho nas fazendas. Entre uns e outros, a inimizade e as guerras. Todavia, os conflitos também ocorriam no interior de cada um dos grupos.


Já vimos anteriormente que a expansão da fé católica e a colonização caminharam de mãos dadas, então, nada mais simples do que justificar a dominação dos nativos também pelo pressuposto de que eles também deveriam colaborar para o funcionamento da empresa colonial. Para isso os portugueses agiram, tentando a todo custo moldar os costumes e práticas dos índios, para que os mesmos se tornassem seres dóceis, capazes de realizarem os mais diversos trabalhos, como por exemplo, a agricultura. Mas surgia um porém... O ameríndio possuía seu próprio sistema de agricultura, visando apenas o necessário para se manterem, não se habituariam facilmente, se é que se habituariam, a uma agricultura que era exigida na colônia. Mais uma justificativa para inferiorizar o índio a condição de não humanizado, cegando a compará-los com os africanos que apesar de também não serem considerados “seres totalmente civilizados”, eram superiores aos indígenas, pois estavam habituados a relação de trabalho exigidas pelos portugueses, Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio (2001, p. 24) diz que:



Os portugueses ignoravam a identidade dos povos indígenas, acusando-os de não ter religião ou de desconhecer a agricultura. Consideravam que se nível civilizatório era inferior ao dos nativos africanos: parecer que muito breve iria justificar a exploração e a catequese obrigatória de tribos inteiras.




A partir dessa visão, esses argumentos foram usados para cometerem verdadeiras chacinas a grupos indígenas considerados desnecessários a colônia, pois já que não serviam para trabalhar, atendendo as necessidades da colônia, nem queriam entregar suas vidas a Deus, se convertendo ao Catolicismo, não tinham mais razão de existirem. Esses índios acusados de impedir o avanço da colonização portuguesa foram aos montes aniquilados. O aniquilamento de muitos como sua escravização forçada contribuíram para que os demais sobreviventes perdessem sua identidade, o orgulho que antes possuíam de pertencer a um determinado grupo. Um padre quando questionado sobre o que se fazer com uma determinada tribo, pertencente a uma região, sua resposta foi a seguinte, segundo Márcia Amantino (2011, p. 39):


A conclusão do Padre era bastante óbvia. Perguntava-se: de que servia os índios terem tantas terras boas que não eram cultivadas e não rendiam nada à Coroa nem a eles? As soluções haviam sido pensadas. Sugeria que fosse escolhido um administrador que os obrigasse ao trabalho; que as crianças aprendessem as primeiras letras, que as meninas fossem colocadas em casas de famílias para aprender coisas de seu sexo e, finalmente, que fossem dados às famílias indígenas pequenos pedaços de terras para que cultivassem. O restante deveria ser arrendado pela população não índia.


Conforme a colonização avançava pelo litoral, os europeus tentavam “enquadrar” os ameríndios aos poucos no sistema colonial, os que resistiam fugiam para os interiores, os sertões, que agora iriam receber a denominação de “inferno”, pois ai residia os “tapuias”, referência aos índios que resistiram brutalmente a civilidade, possuíam em seus corpos a marca do demônio. As fugas eram intensas, e os que fugiam eram estereotipados de “não civilizados”, e o interior da colônia, o sertão, era um lugar infernal por esconder a maior parte desses bárbaros, a parte litorânea já estava salva, os índios transformados a luz da palavra de Deus, os Tupis, bons e civilizados, esses passaram por transformações corporais vistas a olho nu. Os nãos conversos traziam em si a marca da condenação, seus corpos os entregavam quanto mais bizarros fossem, na ótica portuguesa, mais selvagem seriam. Os artefatos usados, suas vestimentas, e o uso que faziam de seu corpo e do próximo passaram a identificar o nível de civilidade que cada tribo possuía.
Dessa feita percebemos que quanto mais estranhos e bizarros fossem ao olhar europeu, os indígenas, mais longe da civilização estariam, precisando uma catequização urgente, mesmo se fosse pelo uso da violência, o meio não importava, o resultado era o mais importante, pois como já foi dito, seus corpos para nada serviam, a não ser para o trabalho, mais logo foram substituídos pelos africanos, que custavam menos, e já estavam, vamos dizer assim, “meio civilizados”, aptos ao trabalho na colônia. Dos índios agora restava apenas suas almas para Deus.


 Autor : Walmar Machado, Historiador Pelas FIP.














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